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“Viver é melhor que sonhar” *

Sonho com as coisas mais bizarras, adquiro superpoderes, me crescem asas potentes no lugar de braços frágeis, perco a roupa, não encontro a porta do banheiro, e por aí vai.

Noite dessas, sonhei com um jabuti. Fiquei cismada, uma vez que o bichinho de carapaça não costuma rastejar em habitats de vidro e concreto. Um amigo brincou para apostar no jacaré ou na cobra, segundo ele os que melhor se afinam na bolsa contraventora.

Em vez da fezinha transgressora, fiz uma breve consulta virtual sobre o seu significado onírico e deparei-me com vários conceitos positivos: “longevidade”; “tenacidade”; “felicidade”.

Felicidade é tudo, né? Não, não é. Desde a fala de uma filósofa contemporânea acerca das armadilhas que minam sociedades negadoras do sofrimento e da energia própria da vida, venho tentando driblar a alegria gratuita, a autoajuda enganosa, enfim, a obrigação de ser feliz o tempo inteiro. Mesmo com toda a carga, é inspirador encarar nossas aflições com coragem e transformá-las em algo útil a outros.

Para suportar a dor pela perda da minha única irmã e demais vítimas da Covid-19, coloquei mente e corpo ao capricho das letras, feito náufrago que se agarra à tábua na fantasia do resgate. Foi nesse cenário de tormenta que nasceu “Confinados”, coletânea de contos lançada um ano atrás.

Em maio último, minha editora submeteu o livro ao crivo do maior prêmio da literatura brasileira. Cheguei a duvidar das chances de uma pequena casa editorial e de uma autora tardia e pouco conhecida. Mas não custava sonhar, apesar do alerta do poeta.

Semirreclusa, prossegui de olhos bem abertos, cuidando dos meus, irrigando a esperança neste combalido país e no restante do planeta redondo, e atenta aos sobreviventes para além da minha soleira lustrosa.

Até que um par de dias após sonhar com o jabuti, fui surpreendida com a notícia de “Confinados” no rol dos dez finalistas do cobiçado prêmio. O aplicativo do celular lotou de mensagens. Abri a do amigo brincalhão: “E aí, jogou? Que bicho deu?”. Digitei com a mais genuína das alegrias em dois longos anos: “Deu Jabuti!”. E exagerei nos emojis de risos e bichinhos cascudos.

* Publicado originalmente no blog Lugar ArteVistas, onde escrevo mensalmente às primeiras sextas-feiras.


O ano em que não montei a árvore de Natal

Em 2020, por motivos compreensíveis, não desencaixotei bolas, sinos e outros adornos natalinos, rito que cumpria há 23 dezembros.

Uma tragédia sanitária sem igual corroeu as entranhas do mundo, revelando toda sorte de maldade que nos espreita.

Perdemos entes queridos, adoecemos, deixamos de fazer inúmeras coisas, e cá estamos, chegando ao fim do segundo ano de pandemia, colando os caquinhos e tentando restaurar a normalidade.

Uma breve saída à noite neste comecinho de novembro foi o bastante para perceber que o Natal já se instalou nas cercanias. Muitos prédios piscam nervosos em vários tons. Eu falei “comecinho de novembro”?

Até entendo que após quase dois anos de afetos remotos estejamos ansiosos por abraços reais, mas o respeito aos rituais é importante para a sobrevivência das culturas. Afinal, ninguém festeja aniversário meses antes da data. Parece que tudo virou comércio, consumo e lucro. Cansada disso, sabe?

Na minha infância, as luzinhas só brilhavam em dezembro. A estrela no topo da árvore era ligada apenas na véspera de Natal. À boca da noite do 24, chegávamos à casa da tia Clotilde, a irmã mais velha [e solteira] da minha mãe, uma espécie de matriarca da família e avó para mim e minha irmã.

Meus pais, ambos órfãos [meu avô paterno – único vivo – morava no interior do Ceará e raramente vinha à capital] e com somente duas filhas, atendiam com imenso gosto ao chamado da tia Clotilde, estendido a alguns aparentados e vizinhos da avenida do Imperador, região central de Fortaleza.

Com a partida da minha saudosa tia, meus pais juntaram-se às noites felizes dos meus sogros que, por serem de outro Estado, sem parentes em Fortaleza, abriam as portas aos novos amigos cearenses, todos muito bem-vindos.

Meu marido e eu adotamos o grande núcleo familiar após o falecimento do meu sogro. Com o correr dos anos, as gerações mais novas passaram a realizar suas próprias confraternizações, numa evolução natural da vida.

Neste ano espero resgatar a tradição da árvore de Natal, celebrar em grupo o amor maior, a solidariedade, a compaixão e o infinito apoio que recebi dos amigos e familiares nos dias mais difíceis.

* Publicado originalmente no Blog Lugar ArteVistas, onde escrevo mensalmente às primeiras sextas-feiras.


Jamais esqueceremos

A médica Thereza Prata, 65 anos, tinha dois filhos, um netinho de 7, uma porção generosa de amigos e muitos pacientes que dependiam dela para a cura ou alívio.

A minha única irmã, tia querida dos meus filhos e primeira filha de mãe hoje centenária, partiu há um ano, em plena atividade pessoal e profissional. Deixou-nos a todos órfãos.

Thê – como eu a chamava – internou-se em São Paulo no dia 2 de março de 2020 para receber uma medula sã, procedimento eleito por seus pares para curar a mielodisplasia detectada em exame de rotina no ano anterior. Embora assintomática, a síndrome poderia evoluir para uma leucemia. Até a véspera de viajar, ela cuidou dos pacientes, exercitou-se e divertiu-se, sem fazer uso de qualquer medicação.

Após duas semanas de intensa troca de afeto no confinamento do hospital para o transplante, retornei a Fortaleza. Deixei-a feliz, à espera da tão planejada alta hospitalar, acompanhada da adorada filha, médica como a mãe. Não imaginávamos que o nosso “até breve!” sem abraços – em respeito ao protocolo pós-transplante – era um adeus.

O curto trajeto do hospital ao aeroporto de Congonhas demorou muito devido à manifestação que ocupava a avenida Paulista e entorno. Eventos similares ocorreram naquele domingo [15/março/2020] em outras capitais, mesmo com o alerta de pandemia da Covid-19 feito pela OMS quatro dias antes. Multidões sem máscara e sem respeito à vida, incentivadas por autoridades que deveriam conter o vírus e proteger a população, assumiram ali, de forma consciente, a cruel tarefa de disseminar a peste.

Dias depois, quando comemorávamos a cura da minha irmã, ela e outros transplantados [crianças entre eles] foram infectados pelo novo coronavírus ainda no hospital. Thê lutou dois longos e angustiantes meses, mas infelizmente a perdemos em 17 de maio de 2020. Suas cinzas foram repatriadas no colo do seu filho querido.

Ao caminharmos para meio milhão de mortos por Covid-19 [só no Brasil], novas cepas e sem vacinas, causa-me repulsa a desumanidade dos que continuam a minimizar a pandemia e desdenhar das medidas de proteção. Quantas vidas poderiam ter sido poupadas? Quantas ainda perderemos? Quem reparará os danos? Jamais esqueceremos.


Era uma vez uma casa triste


“Uma casa arrumada é uma casa morta; onde há vida há perturbação da ordem”. A voz grave e melodiosa do filósofo Mário Sérgio Cortella entrou pelos fones de ouvido enquanto eu transpirava no meu limitado circuito aeróbico: sala-cozinha-varanda, com algumas barreiras no meio do caminho.

Se existe uma casa viva nesses tempos de pandemia, é a minha, constatei ao circular pela quadragésima vez a mesa de jantar transformada em ilha de trabalho, com computador, cadernos, blocos, livros, canetas e um suporte para celular; ou ao me esgueirar por entre sofás, poltronas, pufes e esbarrar numa banqueta deixada fora do lugar; ao roçar mais uma vez a perna direita na porta rebelde do armário sob a pia da cozinha; ao saltar as anilhas de halteres no canto de um degrau; ou ao pisotear as folhas amareladas na varanda.

O resto do dia refleti sobre o direito de uma casa ser alegre. Direito a almofadas e cadeiras fora do lugar; a piano centenário explorado por dedinhos desafinadores; a bicho gigante de pelúcia ocupando metade da sala; à garrafinha d’água vazia junto à xícara de café sorvido sobre a mesinha de centro; a colchonete de treino funcional esquecido na varanda; e a até uma leve camada de poeira sobre os móveis.

Admito que mantive a minha casa impecavelmente linda – aquela que se costuma chamar “casa de revista” – mesmo à época de dois filhos desbravadores que já me deram netos. A chegada dessa novíssima geração levou-me a concessões antes inimagináveis. E agora, após onze meses de confinamento em casa e afastamento social, com tantas perdas de vidas humanas para a Covid-19, a arrumação e ambientação esmeradas foram banidas de vez da minha lista de vaidades.

Percebi que existe harmonia na desordem. Quando tudo é muito certinho e previsível, a vida se torna estática e triste, igual a uma casa arrumada. O meu lugar hoje é muito vivo, para a minha alegria, do meu marido e dos nossos pequeninos. 

O filósofo tem toda razão.

***

*Texto autoral publicado originalmente no blog Lugar Artevistas, onde escrevo às primeiras sextas-feiras do mês.


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