Minhas avós

Sou herdeira de avós que marcharam sobre solos trincados e silenciaram os próprios gritos ante lufadas que lhes ardiam as ventas e varriam a pouca esperança.

Enquanto minhas avós pariam em casa o primeiro dos sete, oito filhos, milhares de contemporâneas do outro lado do planeta se agrupavam em protestos – reprimidos com truculência – contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas, com jornada diária superior a dezesseis horas, inclusive aos domingos.

Ambas de prenome Maria, minhas “privilegiadas” avós – pois brancas e possuidoras de algum torrão nesse mundo chamado Ceará – nasceram e viveram em vilarejos afastados das pequenas urbanidades. O cuidar rotineiro dos muitos filhos, do marido e da habitação rural não era menos extenuante que o daquelas operárias estadunidenses, alemãs ou russas. “Eu, rica? Ninguém come terra!”, dizia a realista avó Maria do lado materno.

Minhas avós não foram à escola, mas assentaram filhos e filhas nas carteiras duplas de madeira do grupo escolar da comunidade, tendo sido minha mãe a que voou mais alto: formou-se professora na capital para orgulho da família. Honrou o diploma pioneiro alfabetizando centenas de crianças e jovens durante 25 anos em escolas públicas de Fortaleza. Elegeu o lado profissional, retardando matrimônio e maternidade; casou-se tardiamente – aos 36 anos – para os padrões da década de 1950; foi mãe aos 38, repetiu a façanha aos quarenta, e fechou para sempre a fábrica de nenéns.

As mudanças entre as gerações das minhas avós e da minha mãe podem ser atestadas desde o parto: minha irmã e eu viemos ao mundo em hospitais-maternidade de Fortaleza e um pediatra acompanhou o nosso desenvolvimento físico. Nossa formação intelectual e autossuficiência – seja esta financeira ou pessoal –, eram prioridade para a nossa mãe, como se quisesse vingar toda a ancestralidade. Minha irmã graduou-se médica e eu pedagoga e jornalista.

No rastro do inconformismo latente, migrei temporariamente para Paris e Nova Iorque nos anos 1990, abraçada aos filhos ainda crianças, onde me espantei com manifestações de todo tipo. Uma delas, em um 8 de março, evocava a morte de mais de cem operárias nova-iorquinas após serem trancadas na fábrica e queimadas pelos patrões – com a cumplicidade das leis –, por reivindicarem melhores condições de trabalho, como redução da extensa jornada. Registrei as memórias de Nova Iorque no livro “Descascando a grande maçã”, minha estreia como escritora.

Cerca de duas décadas mais tarde, minha insistente peregrinação levou-me a outro março histórico. Eu me encontrava em Paris para o Salão do Livro, onde faria uma sessão de autógrafos do romance “O segredo da boneca russa”, quando fui surpreendida por um protesto que rebatizava simbolicamente as ruas do centro da cidade com nomes de bravas mulheres que foram caladas por suas resistências e ativismos. Cartazes cobriam as placas originais que homenageiam predominantemente os homens; em um deles lia-se o nome da vereadora brasileira Marielle Franco, assassinada aos 38 anos no Rio de Janeiro. Ao que consta, nenhuma autoridade francesa destruiu os cartazes, que permaneceram nas ruas até que as águas os transformassem.

Mais de cem anos depois das primeiras manifestações feministas, novos conceitos sociais, culturais e biológicos vieram enriquecer a causa, mas os desafios persistem. Hoje não se discute apenas os direitos da mulher, mas de todas as minorias invisibilizadas. Precisamos entender que o feminismo é uma bandeira coletiva que deve ser empunhada com urgência por todas as mãos. Nos crimes contra a mulher, o Brasil contabiliza diariamente três mortes por feminicídio, 180 estupros, e lesão corporal por violência doméstica a cada dois segundos, conforme dados oficiais recentes.

Guardo profundo respeito aos meus vínculos femininos. Minhas avós se manifestaram em sua época como puderam: cuidaram do seu chão e alimentaram seus filhos com comida e livros. Seus restos mortais repousam no mesmo solo em que marcharam amordaçadas e invisíveis. Minha mãe centenária continua firme, apesar da perda trágica da sua amada filha que brilhou na medicina até ladrilhar a eternidade. Quanto a mim, bem, resisto aqui na peleja das minhas escrituras. No último ano, o luto e reclusão renderam “Confinados”, minha primeira incursão em narrativas ficcionais curtas.

Mil “Vivas!” às avós Maria, às mães Clélia e às irmãs Thereza, grandes exemplos feministas para todo o sempre, em todos os marços e nos outros meses também. Que a descendência siga louvando a todas elas.

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

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