Era uma vez uma casa triste


“Uma casa arrumada é uma casa morta; onde há vida há perturbação da ordem”. A voz grave e melodiosa do filósofo Mário Sérgio Cortella entrou pelos fones de ouvido enquanto eu transpirava no meu limitado circuito aeróbico: sala-cozinha-varanda, com algumas barreiras no meio do caminho.

Se existe uma casa viva nesses tempos de pandemia, é a minha, constatei ao circular pela quadragésima vez a mesa de jantar transformada em ilha de trabalho, com computador, cadernos, blocos, livros, canetas e um suporte para celular; ou ao me esgueirar por entre sofás, poltronas, pufes e esbarrar numa banqueta deixada fora do lugar; ao roçar mais uma vez a perna direita na porta rebelde do armário sob a pia da cozinha; ao saltar as anilhas de halteres no canto de um degrau; ou ao pisotear as folhas amareladas na varanda.

O resto do dia refleti sobre o direito de uma casa ser alegre. Direito a almofadas e cadeiras fora do lugar; a piano centenário explorado por dedinhos desafinadores; a bicho gigante de pelúcia ocupando metade da sala; à garrafinha d’água vazia junto à xícara de café sorvido sobre a mesinha de centro; a colchonete de treino funcional esquecido na varanda; e a até uma leve camada de poeira sobre os móveis.

Admito que mantive a minha casa impecavelmente linda – aquela que se costuma chamar “casa de revista” – mesmo à época de dois filhos desbravadores que já me deram netos. A chegada dessa novíssima geração levou-me a concessões antes inimagináveis. E agora, após onze meses de confinamento em casa e afastamento social, com tantas perdas de vidas humanas para a Covid-19, a arrumação e ambientação esmeradas foram banidas de vez da minha lista de vaidades.

Percebi que existe harmonia na desordem. Quando tudo é muito certinho e previsível, a vida se torna estática e triste, igual a uma casa arrumada. O meu lugar hoje é muito vivo, para a minha alegria, do meu marido e dos nossos pequeninos. 

O filósofo tem toda razão.

***

*Texto autoral publicado originalmente no blog Lugar Artevistas, onde escrevo às primeiras sextas-feiras do mês.

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

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