A nossa melhor parte

O que vale mais?

Um armário abarrotado de roupas, sapatos e bolsas ou uma mensagem de conforto que chega no celular pela perda de alguém muito querido?

Dois carros na garagem ou um afetuoso abraço virtual?

Comprovantes de bilhetes aéreos da viagem adiada – sabe-se lá para quando – ou o pôr do sol que doura a sua sacada toda tarde? 

O amplo apartamento subutilizado e empoeirado ou a varandinha onde você se alimenta diariamente de vitamina D?

A pandemia do coronavírus nos apresentou um novo mundo construído às pressas. Ou nos transformamos ou não sobreviveremos.

Quem acreditou que a vida era apenas diversão, viagens, brincadeiras e que o dinheiro comprava tudo, até saúde, deparou-se com hospitais lotados onde a riqueza do globo inteiro ou a cobertura ilimitada do caríssimo plano não eram garantias de internação nem de cura. 

Sabe aquela verdade que lava, sem trégua, o nosso cérebro desde que nascemos: “A vida só tem significado se você tiver muita grana e um sólido patrimônio”? Ou “Não desperdice tempo com coisas que não geram lucros financeiros”? Tudo precisa ser monetizado e, de preferência, em moeda forte. Aos fracassados, as inutilidades.

Admirar o crepúsculo sobre uma duna ou montanha? Para desocupados. 

Caminhar sem pressa à beira-mar, sentindo a brisa no rosto e a areia quente sob os pés descalços? Para frustrados.

Ler um livro de poesias? Para desiludidos.

Cantar com amigos ao luar, em volta de uma fogueira?Para tolos.

Embalar-se  despreocupadamente em uma rede na varanda? Para preguiçosos.

Participar como voluntário em um projeto social? Para sonhadores.

Cantarolar versos antigos com a mãe idosa? Para ociosos.

Pois é, sinto dizer que essa tal verdade mercantilizada desmoronou, evaporou em géis e álcoois. 

Não sei se a crise sanitária vai mudar a humanidade, mas se pelo menos uma parte dela puder refletir sobre a vida repleta de “utilidades”que levava até então; se parar de negar sofrimentos e tristezas, naturais da existência; se demonstrar às novas gerações que sensibilidade, solidariedade e compaixão são valores essenciais, aí então as milhares de mortes de entes tão amados não terão sido em vão.

Muitos afirmam que o ser humano não tem jeito. Eu prefiro cultivar a esperança, outra inutilidade da era contemporânea. A vida é feita mesmo de pequenas inutilidades. São elas a nossa melhor parte.

***

*Publicado originalmente em 04/09/2020 no Blog Lugar ArteVistas, onde escrevo mensalmente às primeiras sextas-feiras.

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

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