Liberdade é descer do salto (*)

Uma vez perguntaram à cantora Elis Regina (1945-1982) o que ainda faltava em sua vida. A resposta da ‘Pimentinha’ surpreendeu meio Brasil: “Dez centímetros a mais e tudo estaria resolvido”. A melhor voz feminina do Brasil, artista já consagrada aos 30 anos, não queria mais dinheiro ou mais amor, queria ser mais alta. Sua estatura: 1,53 m declarado.

O sonho de toda baixinha é exatamente ter 10 cm a mais para poder obter todo o resto: amor, dinheiro e felicidade. E não adianta vir com lero de autoajuda. “O que vale é a ‘estatura’ interior”; “Agradeça por ter saúde”; “Melhor do que ser chamada de girafa”. Ela trocaria todos os clichês por quatro polegadas extras.

Havaianas, sapatilhas, rasteirinhas, nada dessas delícias tem serventia no closet da baixinha. E haja ir à praia de biquíni e salto. Passear no calçadão de bermudinha e salto. Fazer compras de vestidinho básico e (adivinhe?) salto. A exceção era quanto aos tênis, até inventarem aqueles medonhos com salto embutido, os ‘falsos’ sneakers, que lembram as botas ortopédicas da infância dos ‘sem cava’. Pois eles viraram febre nas adultas ‘sem altura’.

E se eu disser que nem tudo está perdido? Que existem pessoas comuns que, sem ajuda divina ou sobrenatural, conseguem superar complexos, sejam lá de que origem e grau forem?

Depois de décadas sobre plataformas altíssimas, decidi, com todas as letras, descer do salto. Foram três anos de tentativas e recidivas até a conquista do diagnóstico da cura. Estava ‘limpa’ há um ano (uso linguagem rehab porque os danados são viciantes mesmo), mas ontem subi num salto 12. E não era um baile a rigor – nem mesmo uma baladinha –, um casamento chique ou um jantar em restaurante badalado. Passei a tarde de sábado numa casa de praia de amigos, aqui pertinho de Fortaleza. Programinha mais simples – e gostoso –, impossível.

Então, por que diabos eu, metida numa bermuda e camiseta, fui desentocar uma Anabela que me deixou mais espichada que a mais alta das minhas amigas? Nem Sigmund explica. O pior é que ninguém comentou que eu estava mais atraente. O resultado foram câimbras na madrugada e um domingo de repouso forçado.

Mas voltemos à minha autoterapia. Tudo teve início quando passei a conviver com pessoas bem mais jovens que eu, igualmente baixinhas, mas sem sinais aparentes de insatisfação por esse vacilo genético. Minhas colegas do curso de Jornalismo só usavam rasteirinhas, sapatilhas ou tênis. “Por que não eu?”, pensei.

Quando percebi que a maioria das pessoas não linka charme com estatura, direcionei todo o meu desalento para o meu closet a fim de desestabilizar a ditadura da estética. Passei a substituir o salto alto pelo médio até me sentir preparada para investidas mais radicais. O desafio era manter a autoestima elevada apesar dos centímetros a menos. Só uma baixinha entende o drama. Mesmo que a criatura esteja impecável, cabelo, maquiagem, roupa, tudo, ela só se sente poderosa se subir no salto. Como se a autoconfiança da moça desmoronasse sem o tal sacrifício, digo, artifício. O limite da ousadia é ajustar mente e corpo para aposentar, de vez, os incômodos e rotineiros saltos. O fato é que, hoje, as sapatilhas ocupam vitoriosas o pódio do meu armário.

A má notícia é que há recaídas. A eterna insatisfação que nos acompanha, limitados seres que se autodeclaram superiores, mas desmontam diante da insignificância, é tema de muitos estudos. Se não fosse a estatura, seria outra coisa. Quilos extras, cabelos crespos, quadris largos. Mas também poderia ser magreza excessiva, cabelos finos, bumbum reto. Parece que é da condição humana colocar a felicidade sempre um passo adiante, ou 10 cm acima, como queira. Mas não desista. Na primeira oportunidade, experimente ir ao cinema usando sapatilhas. E comemore a liberdade.

(*) Artigo de Celma Prata (1,60m declarado), originalmente publicado na Revista Moda Shoes Brasil (dezembro/2013)

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

16 respostas para “Liberdade é descer do salto (*)

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