Vamos retomar nossas calçadas? (*)

Apesar da excelência do transporte coletivo, prefiro percorrer a pé curtas distâncias, salvo quando estou atrasada. Então, através de calçadas largas e planas, alcanço a parada mais próxima e entro no ônibus climatizado e pontual, que me deixa a poucos passos do destino. Na bolsa de grife, carrego maquiagem importada, celular, documentos, dinheiro e cartões de crédito. A tiracolo, o laptop. Relógio de marca no pulso. Joias arrematam o visual.

A cena acima poderia ser real, mas infelizmente não acontece em Fortaleza e em nenhuma das capitais brasileiras. A sensação de insegurança, o descrédito nas autoridades e as estatísticas não permitem. Sem pretensões de traçar um panorama da escalada da violência em minha cidade, revisito minhas memórias a partir dos bairros em que morei para tentar entender o fenômeno e sugerir algo.

Monte Castelo. Anos 1960. Crianças brincam defronte de suas casas; Mães observam das cadeiras na calçada, enquanto trocam receitas e fofocas. “Sabem a última da ‘minha’ Maria? Se aprontou toda pra dar ‘boa noite’ pro Cid Moreira!”, divertem-se com a ingenuidade das meninas recém-chegadas do interior para trabalhar como domésticas na ‘cidade grande’. Caminhar em paz por ruas e calçadas, usar transporte público, era parte da rotina de qualquer morador.

Meireles. Final dos 1970. Recém-casada e a tranquilidade ainda pontuava o cotidiano da cidade, mas não por muito tempo. Quatro anos depois, e um arrombamento nos fez desistir do lugar. Fiquei sem as joias de família. O inimigo conhecia nossos hábitos. Livramo-nos do confronto, mas não da incômoda sensação de ter nosso cantinho invadido.

Praia do Futuro. Início dos 1980. Ainda sem filhos, chegamos ao paraíso que não conseguiu honrar as promessas. Construções subiam velozmente até serem implodidas pela antipropaganda “A segunda maior maresia do planeta”. Nem estudiosos, nem o senso comum, conseguem explicar o abandono da grande faixa litorânea numa capital que se promove por seus verdes mares, brisa permanente e sol o ano inteiro. O poder público se ausentou, abandonando os teimosos sobreviventes à própria sorte. Um assalto − com disparos − na calçada de casa acelerou nossa despedida.

Meireles novamente. Desde 1999. Voltar a habitar − dessa vez com dois filhos adolescentes − a área ‘mais nobre da cidade’ não é garantia de qualidade de vida. Os moradores não usam os passeios. Ninguém quer se arriscar a ficar sem o i-phone, o i-pad e todos os i-tudo que batizam as novas, caras e ‘indispensáveis’ tecnologias. Os entendidos afirmam que é preciso combater a raiz do problema, eliminando tráfico e corrupção. Do contrário, não vai ser um policial amigo em cada esquina ou patrulhas pacificadoras rondando o quarteirão que resolverá a questão. Muito menos, blindar portarias e carros ou contratar seguranças armados.

Como conquistar, então, uma rotina semelhante à das capitais europeias, norte-americanas e algumas latino-americanas? A resposta de especialistas é velha conhecida nossa: investindo em segurança, mobilidade, transporte coletivo, educação no trânsito… Ou seja, um longo processo. E para já?

Para começar, sugiro aos usuários de automóveis, em lista encabeçada pelo prefeito e vice, utilizar o transporte público ou bicicleta − ou as próprias pernas − para trajetos urbanos (o prefeito de Nova Iorque, Michael Bloomberg, vai trabalhar de metrô, enquanto a vice de Paris, Anne Hidalgo, prefere a bicicleta. Em tempo: Bloomberg é a 10ª fortuna dos EUA).

Ao resgatarmos nossa cidadania, poderemos, de forma simbólica, tatuar nossos ideais nas calçadas, esquinas e praças. Quem sabe, em breve, a cena que abre esta narrativa entre para o dia a dia dos fortalezenses? Nós merecemos.

(*) Artigo de Celma Prata, publicado originalmente na Revista Siará, do jornal Diário do Nordeste, em 07/abril/2013

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

10 respostas para “Vamos retomar nossas calçadas? (*)

  • Silvia

    Parabéns ! Texto campeão ! Bj

  • Izabel Ribeiro Machado

    Celmita querida, como gostei do seu artigo!!! E me remeteu um fato ocorrido há pouco…. Em Firenze, saímos para jantar em um restaurante super charmoso, dentro do antigo mercado, com uma amiga mta querida que lá reside há uns 5 anos. Qdo acabamos, já era meia-noite e pedi ao garçom para providenciar um táxi p/ nossa volta ao hotel…. A surpresa dele foi enorme! Como iríamos de táxi depois de comermos e bebermos … Teríamos que ir andando ….. Kkkk Umas 12 quadras … Em um frio de 4 graus. Eu perguntei: “Nao tem perigo, nessa área, a esta hora?”. Ele ficou querendo entender a que tipo de perigo eu me referia … Enfim, fomos andando naquele museu a céu aberto, fazendo a digestão, rindo e jogando mais conversa fora! Retrata um pouco daquilo que deixamos de ter e quase nos acostumamos! O que é o pior! Aqui, até dentro do carro ficamos olhando p/ os lados, p/ trás, sempre em alerta total!!! Bj gde! Bel

  • Rose

    Vamos esperar q o próximo secretario Ciro Gomes consiga melhorar nossa segurança , bjs

  • Lucia Helena Dummar Antero

    Celma, perdemos as esperanças e todos estão se armando para se protegerem. A própria polícia manda que a vítima fique quieta e aceite com boa vontade o assalto. Enquanto isso, governador, prefeito e autoridades, protegidas pela polícia que deveria estar nas ruas cumprindo o seu papel.
    Gostei muito do seu artigo.

    • Celma Prata

      A sua análise, Lúcia Helena, é a de todos os cidadãos de bem que se sentem impotentes diante dessa cruel realidade. Temos que transformar isso! Bjos e obrigada pelo comentário, Celma

  • Valéria Prata

    Triste realidade a nossa…domingo em plena Leonardo Mota com Santos Dumont,minha irmã foi retirada do carro e jogada no asfalto,onde veio a queimar o ante braço,por 2 menores que ainda levaram o carro.Não temos mais segurança em nenhum lugar da nossa querida cidade.
    Amei o texto.Um grande abraço!!!!

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