Rua da Escadinha, número 162

casal com o louro

Que tal um dedo de prosa?

Já faz um tempinho que tive o enorme prazer de conhecer pessoalmente alguém que sabe só TU-DO sobre música e filmes antigos, carnaval e outras cositas mas que abrandam a nossa sede e fome de cultura.

Estou falando de Christiano Câmara, um apaixonado pela vida e pela onipresente Douvina, sua incrível companheira durante as últimas seis décadas. Os dois vivem arrodeados por um acervo que inclui, dentre outras raridades, alguns milhares de discos de cera e vinis, os ‘bolachões’, em um lugar repleto de história, encanto e amor.

Se me pedissem para definir o Christiano em uma só palavra, eu diria ‘jovial’. Sabe aquele espírito irrequieto e aberto dos jovens? Para honrar o ditado das exceções, contudo, evitem tentar convencê-lo a usar essas geringonças pós-modernas, como “a tal da infernet” e telefonia celular.

Ele e Douvina recebem amigos e desconhecidos, no melhor estilo ‘pode chegar!’, sem formalidades, sem agendar dia nem hora, em sua acolhedora – e sempre aberta após as 14 horas – casa, que fica ali por trás da Catedral Metropolitana de Fortaleza.

sala 1

As paredes da sala e quartos são forradas por centenas de fotos, pôsteres e quadros. Quando você pensa que não há mais espaço para afixar um minúsculo selo, eis que surgem cozinha, corredores e banheiros dispostos a acolher o recorte do jornal que publicou a última entrevista com ele, a frase de alguém famoso que ele decidiu perpetuar ou a declaração de amor eterno que escreveu para Douvina quando completaram 47 anos de casados: “Que importa que a morte (física) possa vir, se nós já tornamos imortal o nosso amor?…”.

carta

Nosso incansável colecionador dedica as madrugadas, quando a maioria dos mortais dorme, para regravar fitas de filmes antigos, que depois assiste com Douvina: “Tem coisa melhor do que cinema no conforto do nosso canto?”, ela comprova com seu eterno sorriso e bom humor, saindo apressada para passar o batom quando me vê tirando a câmera da bolsa.

Em uma das salas, vejo fotos de família. Vou correndo os olhos pelos rostos sorridentes, enquanto Douvina debulha os nomes das filhas e netos. “Esta não é a Sarinha?”, me adianto. Ela responde, entre orgulhosa e surpresa, com outra pergunta: “Você conhece a minha neta?”. Coincidências… A essa altura, já me sinto parte da família. O casal é exatamente assim, faz qualquer um se sentir como se de casa fosse.

árvore

Voltando do enorme quintal com uma impressionante árvore centenária, tomo o caminho da porta de saída, parando ainda várias vezes diante do acervo de Christiano. “Está vendo esta marquesa?”, pergunta Douvina, apontando para a bela poltrona antiga de madeira, com assento de palhinha natural. Uma das filhas resgatou a peça de um lugar que desprezou seu inestimável valor e deu-a de presente aos pais. Hoje, restaurada, transforma o estreito hall de entrada em grandioso espaço de saudação aos visitantes.

marquesa

Avesso a badalações, Christiano não se anima quando o convido a participar de um evento cultural. Prefere ficar em seu museu particular, escrevendo a história e repassando-a a quem aparecer na casa da antiga Rua da Escadinha, atual Travessa Baturité.

Parto com a promessa de retornar com mais calma, para beber o famoso cafezinho da Douvina e ouvir as interessantes histórias do casal, ao som da palração do ‘louro’ de estimação.

P.S. Para os mais jovens e menos informados, vai a preciosa dica: foi o Christiano Câmara quem idealizou a maior manifestação cultural momina da cidade, o Carnaval da Saudade, baile que acontece há 45 anos no Clube Náutico, em Fortaleza, no sábado ‘magro’.

Serviço
Museu particular do Christiano Câmara
Travessa Baturité, 162
Centro
Fortaleza (CE)
Aberto à visitação de segunda a sexta, sempre após as 14h

Imagens da autora

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

12 respostas para “Rua da Escadinha, número 162

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

365 Days of Lebanon

one post a day of Lebanon through my eyes

Antimidia Blog

Textos sem sentido, para leituras sem atenção, direcionados às pessoas sem nada para fazer.

Resenha do Dexter

Blog sobre tudo e nada, ou seja, sobre o que eu escrever (E resenhas de Livros)

Admirável Leitura

Ler torna a vida bela

Reverso Literal

Blog, poesia, prosa, contos, escritos, literatura, arte, imaginação, livros

Lugar ArteVistas

#arteondeestiver

Farol Abandonado

poesia profana, solitária e melancólica

Diferentes Tons

Artes, Literatura, Moda

RePensandoBem

Roda de Conversas

Thiago Amazonas de Melo

Não acreditem em nada do que eu digo aqui. Isso não é um diário. Eu minto.

prata-na-crônica

Crônicas, Jornalismo e outras Narrativas

Livros e Leitura

Universo mágico da leitura

Riksaint Space

Um espaço dedicado às energias renováveis.

Estalos da Vida

As vezes a felicidade começa em um estalo!

Sobre os dias

sensações, vinhos e faltas.

Vila das Noivas

por Ingrid Martins e Aline Farias

%d blogueiros gostam disto: