“Eu quero!” (*)

Não se envergonhe de sentir ‘inveja branca’ daquela garota linda, alta, magérrima, de cabelos longos e, como se não bastasse, rica, que namora o cara perfeito, com quem divide um apê fantástico com vista para o mar e um tremendo carro na garagem.

A inveja, não importa a cor, é um sentimento inerente ao ser humano, portanto, relaxe, o papo aqui não é moralista. O problema é quando embarcamos nas ondas radicais da trinca indústria−comércio−serviços (principalmente dos produtos de última necessidade) para alimentar nossas fraquezas e engordar o faturamento deles.

Uma bolsa feminina, por exemplo, deixa de ser aquele objeto simples e útil para guardar pertences indispensáveis (documentos, chaves, nécessaire e celular), transformando-se em algo cujo preço ultrapassa a casa das centenas de reais. E quando esse tesouro está pendurado no ombro da garota perfeita?

Um automóvel não é só um meio de transporte básico e confortável que lhe deixa em poucos minutos no seu destino (o fato de ficar parado horas no trânsito caótico não vem ao caso, nada é perfeito), mas sim uma obra de arte itinerante, com a cor da moda (“Tem que ser branco!”), placa personalizada, aquecedor e teto solar em país tropical, além de amortecedores que não resistem à buraqueira das estradas brasileiras. E se essa preciosidade estiver na garagem do bonitão que namora a menina maravilhosa?

“Eu quero!” passou a ser a expressão recorrente de grande parte dos consumidores, que sonha dia e noite com os bens do ‘casal perfeito’. E haja troca de ideias sobre prazos de entrega do automóvel branco, ou como economizar na compra da tal bolsa, que de tantas usuárias por metro quadrado já manchou a imagem de ‘exclusiva’. “Em Nova Iorque, mesmo com os 8,25% de impostos? Ou seria nas lojas próprias da grife em Paris?” Gente, é muita preocupação nesses tempos de eleições municipais. Mas quem está interessado nos destinos da sua cidade nos próximos quatro anos, se já tem traçado o roteiro internacional das férias de inverno?

Essa conversa me fez lembrar o filme ‘Amor por Contrato’, de 2010, estrelado por Demi Moore. Sua personagem lidera a farsa de uma família feliz e super bem sucedida financeiramente, com pai, mãe e um casal de filhos adolescentes, todos bonitos, brancos e magros. Os quatro trabalham para uma empresa cuja missão é despertar o desejo de consumo na classe média alta, desde joias, acessórios e roupas de grife, passando por carrões e eletrônicos, até viagens, produtos gourmet e de decoração. Seu alvo são os moradores do condomínio classe A para onde se mudam.

O desfecho trágico da película liga o alerta do nosso mundo real. Um dos vizinhos da família perfeita, ambicioso até o último crédito do cartão, financia um carro igual ao do farsante, joias de grife para a mulher e outros objetos, tão inúteis quanto caros, fica sem dinheiro para pagar a hipoteca e se suicida amarrado ao fio do cortador de grama último tipo, estacionado no fundo da piscina da sua bela mansão.

Por se tratar de uma ficção, o filme pode mascarar nossas reflexões com um “Isso não acontece comigo!”, mas será que muitas vezes não fazemos o papel dos amigos da família perfeita vivida pela bela atriz e seus pares? Os dramas reais estão cheios de exemplos com final nada feliz, embora não fatais.

Portanto, ao ver it girls e seus acompanhantes produzidos e motorizados ‘para matar’, pense duas vezes antes de se endividar até o pescoço. Mesmo sem se dar conta, esses formadores de opinião às avessas estão a serviço das grifes que usam, mas, ao contrário dos personagens do filme, trabalham de graça para serem garotos-propaganda e, pior, ainda pagam milhares de dólares por isso. Um tipo de ‘servidão’ consentida.

Ninguém está dizendo que não consuma, mas fazê-lo com moderação ainda é a melhor alternativa. Antes de gritar “Eu quero!” para tudo o que vir pela frente, pergunte-se: “Eu preciso mesmo disso?”. Tanto a indústria quanto o comércio e serviços − e os empregos que geram − podem sobreviver a um público consumidor mais consciente.

(*) Artigo de Celma Prata publicado, originalmente, na edição de dezembro/2012, da Revista Moda Shoes Brasil

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

2 respostas para ““Eu quero!” (*)

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