Negar é preciso (*)

Quantas vezes você já aceitou um convite quando o seu racional lhe implorava um sonoro e firme ‘não’, só para não magoar um amigo ou para, simplesmente, não parecer antipático?

A dificuldade para dizer ‘não’ parece ser da metade da humanidade, a outra metade simplesmente fala ‘sim’. Agora, no sério. Por uma questão cultural, nós brasileiros sentimos enorme dificuldade para pronunciar essa palavra com apenas três letrinhas, mas que tem mais força do que o campeão de sílabas ‘inconstitucionalissimamente’. Deve vir daí a nossa fama de simpáticos, ‘astral’, de bem com a vida e outros rótulos que fazemos questão de manter, mesmo que nos custem muitos dissabores.

Dizer que não vai à festa de aniversário do seu amigo, ou ao fim de semana na praia com a turma, ou ainda ao programinha de sábado à noite com a galera, e mais àquela viagem com os colegas no feriadão, é mais difícil do que se pensa. Muitas vezes não vamos, mas não temos coragem de negar. Será que não é pior deixar o outro a ver navios? Sim, mil vezes sim, e nós sabemos disso, mas mesmo assim não conseguimos dizer ‘não’.

Você certamente já esteve em ambas as situações, levando um cano ou dando um bolo. E, cá entre nós, ‘cano’ e ‘bolo’ só são interessantes no dicionário etimológico. No primeiro caso, você se sente a Cinderela abandonada e no segundo, a madrasta da pobrezinha. E pensar que tudo poderia ser resolvido com um simples ‘não’, firme, sincero e suave… Impossível? Veremos.

Povos europeus, por exemplo, lidam melhor com negativas, sabem falar ‘não’ com firmeza, são mais francos e objetivos em situações do tipo. O que para nós pode soar falta de gentileza, para eles não passa de uma atitude normal adulta. É um respeito a si próprio e aos outros.

Não estou me referindo aqui aos convites indesejáveis, nem tampouco àquelas pessoas que nunca aceitam chamados. Para esses extremos, o melhor a fazer é riscar do seu mailing, antes que o sentimento de rejeição acabe por lhe levar ao primeiro consultório psiquiátrico da escassa lista dos planos de saúde, sem chance de alta nos próximos anos.

Especialistas alertam para a falsa ideia de harmonia que o ‘sim’ traz, uma vez que o conflito continua lhe perseguindo, simplesmente porque ele está dentro de você. “Por que eu não neguei logo”? “E se eu tivesse dito um ‘não’, será que eles me convidariam novamente?” É também esse receio de ser excluído do grupo e de não ser visto como um deles, que lhe faz eliminar a negativa do seu google.

Nos últimos meses tive que superar o medo de dizer ‘não’. Mergulhei de roupa e tudo em um projeto pessoal e precisei separar, na minha agenda eletrônica, as ações adiáveis das mais urgentes. Isso não significa que as primeiras tivessem menos importância para mim. Elas continuam sendo prioridades, mas naquele exato momento fui obrigada a fazer escolhas, prerrogativa de gente grande, de adultos que somos.

Com isso, deixei de comparecer a encontros mensais com queridas amigas, não pude participar de momento prazeroso com parentes que vieram de longe, dei um tempo nas atividades físicas que eu não passava sem, recusei convites bem interessantes, faltei aos almoços com familiares aos domingos…

O incrível de tudo isso é que sobrevivi e nem doeu tanto. Saber dizer ‘não’ sem agredir, explicar, desde que usando de sinceridade, que você preferiria aceitar o chamado, mas infelizmente não será possível daquela vez, também pode ajudar a lidarmos com esses conflitos e não desapontar a quem devotamos carinho e consideração. Portanto, saber dizer ‘não’ é necessário, mas precisamos ser cuidadosos com a forma de como negar, para não ferir a sensibilidade dos nossos patrícios.

Todo o treinamento recente não conseguiu me capacitar por completo. O episódio que cito a seguir me inspirou a compartilhar o tema com o caro leitor. Às voltas com a finalização do meu primeiro livro de crônicas, o tal projeto pessoal de que falei ainda há pouco, recebi dois convites carregados de afetividade, aos quais não pude negar. Um foi para participar de uma entrevista para uma revista-laboratório do curso de Jornalismo da universidade na qual me graduei. O outro, para escrever para uma bem conceituada revista nacional de moda e comportamento. Resultado: mesmo afastada por uns dias da redação, já respondi à entrevista por email e concluo agora o texto para a revista. Disse ‘sim’ a ambos, mas o fiz de bom grado, com o maior prazer, sem conflitos. É um bom sinal. Convido-o a começar!

(*) Artigo de Celma Prata publicado, originalmente, na edição de junho/2012, da Revista Moda Shoes Brasil

Sobre Celma Prata

Celma Prata é jornalista e escritora fortalezense. Autora do romance “Bodum” [2022], “Confinados” [2020], finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria Conto; do romance "O segredo da boneca russa" [2018]; e dos livros de não-ficção "Viver, simplesmente" [2016]; e "Descascando a Grande Maçã" [2012], todos pela Editora Sete. É membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Fortalezense de Letras, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil e da Sociedade Amigas do Livro, entidade cultural em que presidiu o conselho diretor, de 2016 a 2020. Ver todos os artigos de Celma Prata

4 respostas para “Negar é preciso (*)

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